quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

DOCE LIGAÇÃO...GATOS E POETAS...TRANSMITEM PAIXÃO!!

A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira
Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier
Flagrante
o meu gato
na cadeira
se coça
corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno
a manhã clara canta na janela
estou eterno

 
 "Ferreira Gullar"
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria). De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''
''Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.''
''Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?
Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - Eo comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passa de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''

Bocage
  Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato


Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato


Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato


Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato


Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato


Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato


Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Alexandre O´Neill
Que fazes aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,

ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?

Qual o crime de que foste testemunha?
Que Deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo

ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

 
Alexandre O´Neill
Alexandre O´Neill, o gato e o adeus


O GATO, vendo o poeta de ombro apoiado na ombreira a observar a feira cabisbaixa em seu redor, acercou-se dele e perguntou-lhe, no murmúrio ronronado que costuma servir de preâmbulo às grandes questões metafísicas:

- Servos ou donos?

O poeta, por achar a pergunta demasiado enigmática, contornou a resposta afagando-lhe o dorso e dizendo:

- Deves estar cheio de fome, o teu mal é fome, e eu não tenho forma de remediar esse problema, porque não sou rato, nem peixe, nem pássaro estonteado pela luz. Eu sou apenas um pobre poeta de ombro na ombreira.

Mas o gato, apurando o gutural e afectuoso ronrom, insistiu:

- Sei bem ao que venho, sim, porque eu nunca me esqueço dos versos que me são dedicados. Eu bem me lembro das tuas palavras, Alexandre: Que fazes por aqui, ó gato? / Que ambiguidade vens explorar? Quem sou eu, meu caro Alexandre, para te deixar sem resposta, logo a ti, meu poeta de Lisboa, de coração amarfanhado pela tenaz da mais irónica ternura?

Foi então que Alexandre se lembrou do gato do poema, dessa coisa ágil e esquiva, soberana e livre, em forma de assim, fugaz como um golpe de vento, rebelde como uma metáfora imprevista.
- Tantas vezes te deixei utilizar esta mão — disse — que cheguei a acreditar que, quando escrevesse um poema sobre ti, serias tu mesmo a escrevê-lo, de forma mediúnica, usando o movimento pausado da minha mão sobre o papel.
O gato, esse mesmo, o do poema, roçou a cabeça pelas pernas do poeta, impregnando-se com o seu cheiro, com o perfume das suas palavras exactas e limpas, e depois aventurou-se num breve monologo de bicho filosofante. Assim:
- É como te digo, Alexandre, tu e eu temos em comum este vício felino de sermos livres, nas palavras, nos gestos, nos silêncios. Um dia, tu partes e eu fico para aqui abandonado a miar à lua, como se perguntasse por ti. Um dia, eu parto e tu ficas sem gato a quem possas dedicar o poema, órfão de gato, nostálgico da sua arqueada liberdade arrastada sobre os telhados como uma confissão de nocturnos cios.
O poeta, emocionado com a enleante sabedoria do gato, esse mesmo, o do poema, só conseguiu perguntar-lhe:
- Afinal, vamos lá a saber, o poeta és tu ou sou eu?
Ao que o gato respondeu:
- Somos os dois, Alexandre, somos os dois, cada um à sua maneira. Tu no que escreves e eu no que não escrevo mas vivo. Temos este destino comum a ligar-nos como uma ponte, como uma centelha de luz, como um arame a juntar as duas extremidades da lua nova.
Alexandre, o poeta, só encontrou uma forma de lhe responder:
- Há miar e miar, há ir e voltar.
Ainda a frase não se deixara concluir e já o gato se empoleirara sobre o parapeito de uma janela, muito perto da ombreira da porta, posto de observação do poeta para ver a feira a ficar cada vez mais cabisbaixa, por falta de esperança para erguer de vez a cabeça em direcção ao sol.
Do gato nunca mais o poeta teve noticias, nem em prosa nem em verso, e quando, num sisudo dia 21 de Abril, o coração do poeta, como um gato triste e cansado, se recusou a levar por diante a faina de estar vivo, houve quem avistasse um velho gatarrão sobre o parapeito da janela do hospital, murmurando com a sapiência do seu estilo ronronado:
- Há miar e miar, e tu, Alexandre, hás-de voltar, porque um gato sem o seu poeta de estimação fica prometido à morte como um pardal à inclemência do relâmpago.
E quando alguém, aproximando-se dele, quis saber "o que fazes por aqui, ó gato?", o bichano, arqueando-se para o derradeiro salto na direcção da lua, respondeu apenas:
- Perguntem ao Alexandre, ao O'Neill, que só ele sabe. Os poetas é que sabem. É dos livros.


Suponho uma gata malhada, chama-se Ágata Sardenta
Listras de tigre e pintas de leopardo a sua pele ostenta

Deita-se o dia inteiro no capacho ou nos degraus da escada;


E por ali todo tempo jaz deitada – mas isto é o que faz uma Gata Malhada!

Mas quando, à noitinha, cessa toda a correria

É que o duro trabalho da gata principia.

E quando toda família cai no sono e se deita,

Ela desce no porão, levanta as saias e espreita.

Interessam-lhe a fundo as maneiras do rato

Sua péssima conduta e sua falta de tato.

Assim, quando o enquadra sob o capacho escondido,

Ensina-lhe sua música, seu crochê e seu cerzido.


Suponho que uma gata Malhada, chama-se Ágata Sardenta;

Outra igual a custo acharia, adora o calor e sob o sol se esquenta.

Deita-se o dia inteiro ao pé do fogo, do forno ou sobre uma almofada;

E ali por todo o tempo jaz deitada – mais isto é o que faz uma Gata Malhada!


Mas quando à noitinha, toda a azáfama cessa

É que a árdua tarefa da gata recomeça.

Ao perceber que aquele rato não se aquieta,

Conclui que isto se deve a uma equívoca dieta.

E por crer que na vida nada vem de graça,

Corre logo para o forno e a frigideira. E assa

Um bolo de rato, enquanto bem devagarinho

Frita uma bele omelete de queijo e de toicinho.


Suponho que uma gata Malhada, chama-se Ágata Sardenta;

Apraz-lhe dar nós nas cordas da cortina ao pé da qual se senta.

Deita-se à beira da janela, ou em qualquer coisa acolchoada:

E ali por todo tempo jaz deitada - mas isto é o que faz uma Gata Malhada!


Mas quando, à noitinha, chega ao fim o bulício

É que a gata, outra vez, retorna ao seu ofício.

Ela crê que às baratas cabe alguma ocupação:

Nada de ócio ou de luxúria no ermo do porão.

E assim fez dessa tola malta de arruaceiros

Uma bem disciplinada tropa de escoteiros,

Com um alvo na vida e a missão de colher louros,

Tendo mesmo formado uma Banda de Besouros.


Cabe assim darmos agora tres vivas à Malhada,

Pois sem ela, ao que parece, não há casa arrumada.

Extraído do "Livro do velho Gambá sobre gatos travessos".

T.S.Eliot





falta-me um gato
para fazer festas às palavras. algumas chegam entre mãos
na carícia breve da madrugada.
enquanto não parto para ítaca,
viajo, aguardo circe
que me transforme em felino agudo.
depois é só encostar-me às pernas
e fitar-me
eu, nariz aquilino, olhos rasgados em mim
na verticalidade da íris;
lamber os pelos, a pele,
arquear o corpo na languidez do gesto.
ficar à espera que a palavra cresça.

José felix 

 Carta de  PAUL KLEE aos seus gatos
Queridos Nuggi, Fritzy e Bimbo:


Chegado ao fim da minha vida, dirijo-vos esta carta para vos dar conta da importancia que tiveram no meu atribulado percurso como pintor.

Creio que não teria chegado onde cheguei como artista do meu tempo sem o vosso amor e a inspiração que nunca me regatearam.

Fiz questão de vos manter presentes em tudo quanto fiz, desde as cartas aos poemas, passando, naturalmente, pelos quadros em que tentei modestamente representar-vos.

Vocês acompanharam-me nas horas de sofrimento e incerteza, de exílio e de privação, mas também naquelas que me deram a ilusão da felicidade. Primeiro o meu querido Nuggi, cinzento e meigo, ainda nos anos da juventude; depois, Fritzy, tigrado, brincalhão e matreiro a que tambem chamei Fripouille, nos tempos mais intensos da criação pictórica e tambem do reconhecimento artístico pelo público e pela crítica; por fim, Bimbo, branco e discreto, já nos anos da doença e da decadência física, sempre dedicado, sempre presente, sempre terno e atento.

Devo confessar que sempre vislumbrei em vós um toque do sagrado, porque não hesito em considerar-vos seres divinos, que eu não fui capaz de retratar com o talento nas telas e nos desenhos em que vos tentei eternizar. Sim, é verdade que vos escrevi cartas, sobretudo a Bimbo, já no fim da vida, e que não tinha sossego nos meus telefonemas sempre que me diziam que algum de vocês estava doente ou andava fugido. Isso nunca foi uma fraqueza minha e sim uma das principais manifestações do amor que consegui compartilhar com outros seres.

Ainda assim, alguns dos quadros de que mais gosto são precisamente aqueles em que vos reservei lugar, com títulos como O Gato e o Pássaro ou A Montanha do Gato Sagrado. Os gatos ajudaram tambem a fortalecer amizades com artistas e poetas que comungavam comigo esse amor e essa admiração irrenunciáveis. Foi o que aconteceu com Rainer Maria Rilke. Até isso eu vos fiquei a dever, tributo reservado a um pintor que tentou estar sempre à altura da vossa ternura e infinita capacidade de dádiva.

Agora que estou de partida, levo comigo a recordação do que vocês foram para mim e a convicção de que não teria sido o que fui, nem teria chegado onde cheguei, sem o vosso amparo e dedicação. No meu íntimo, sei que voltaremos a encontrar-nos, porque não pode acabar no perecível mundo material e terreno um amor como o nosso.
Eternamente vosso
PAUL KLEE
Extraído de "Amados Gatos" de José Jorge Letria
 


Ode ao gato

Os animais foram imperfeitos, 

compridos de rabo, tristes de cabeça. 

Pouco a pouco se foram compondo, 

fazendo-se paisagem, 

adquirindo pintas, graça vôo. 


O gato, 

só o gato apareceu completo e orgulhoso: 

nasceu completamente terminado, 

anda sozinho e sabe o que quer. 


O homem quer ser peixe e pássaro, 

a serpente quisera ter asas, 

o cachorro é um leão desorientado, 

o engenheiro quer ser poeta, 

a mosca estuda para andorinha, 

o poeta trata de imitar a mosca, 


mas o gato quer ser só gato 

e todo gato é gato do bigode ao rabo, 

do pressentimento à ratazana viva, 

da noite até os seus olhos de ouro. 


Não há unidade como ele, 

não tem a lua nem a flor 

tal contextura: é uma coisa 

só como o sol ou o topázio, 

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como 

a linha da proa de uma nave. 


Os seus olhos amarelos 

deixaram uma só ranhura 

para jogar as moedas da noite . 

Oh pequeno imperador sem orbe,

conquistador sem pátria, 

mínimo tigre de salão, nupcial 

sultão do céu das telhas eróticas, 


o vento do amor na intempérie 

reclamas quando passas 

e pousas quatro pés delicados 

no solo, cheirando, 

desconfiando de todo o terrestre, 

porque tudo é imundo 

para o imaculado pé do gato. 


Oh fera independente da casa,
arrogante vestígio da noite, 

preguiçoso, ginástico e alheio,
profundíssimo gato, 

polícia secreta dos quartos, 

insígnia de um desaparecido veludo, 

certamente não há enigma na tua maneira, 

talvez não sejas mistério, 

todo o mundo sabe de ti e pertences 


ao habitante menos misterioso 

talvez todos acreditem, 

todos se acreditem donos, 

proprietários, tios de gato, 

companheiros, colegas, 

discípulos ou amigos do seu gato. 


Eu não. 

Eu não subscrevo. 

Eu não conheço o gato. 

Tudo sei, a vida e o seu arquipélago, 

o mar e a cidade incalculável, 

a botânica o gineceu com os seus extravios, 

o pôr e o menos da matemática, 

os funis vulcânicos do mundo, 




a casca irreal do crocodilo, 

a bondade ignorada do bombeiro, 

o atavismo azul do sacerdote, 

mas não posso decifrar um gato. 

Minha razão resvalou na sua indiferença, 

os seus olhos têm números de ouro.
Pablo Neruda
o rabo do gato desenha
letras árabes no mosaico da sala.
arranha o tapete de arraiolos,
rasga o jornal de letras
e um verso escapa-se pela janela entreaberta
uma pétala de violeta
              é o tempo das violetas
fugiu para a janela da vizinha
um andar abaixo.
talvez atraída pelo cisne de camille saint säens
no carnival des animaux
o gato enfurece-se com o silvo do vento
e quase me estraga o poema.
             vale o método tradicional
um novelo de linha encanta o gato.
alguém pousa os lábios nos meus olhos.
José Félix 
 
vejo atrás dos vidros
no jardim o gato
siamês que passa
entre os girassóis
na mesa da sala
há mais girassóis
num pote azul
de faiança,
às cinco da tarde
a janela,
a porta,
estão fechadas, mas
agora o gato
vai passar na penumbra,
entre os girassóis
e a parede.
é uma sombra
rapidamente
imaginada
sobre a mesa,
que fita em ponto,
de olhos límpidos,
e percebe o jogo
de espaços e que
já regressou ágil
de salto felino
ao corpo do gato
repentino lá fora.
 
  Vasco Graça Moura

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